Cartas da Santa Casa - Há que devolver à sociedade o que ela nos dá

03-11-2010 22:33

Vivemos num tempo de grandes dificuldades. Nem toda a gente as sente ou, a dizer a verdade, uns sofrem-nas muito mais. Os que perdem o emprego dum dia para o outro, sobretudo quando é o casal a sofrer igual sorte, com as prestações da casa que o banco exige no fim do mês. Os que procuram emprego, acabados de sair das escolas, depois de anos e anos dedicados a tirar um curso que, acreditaram, lhes iria abrir as portas. Os idosos que, apanhados pela doença e pelo peso dos anos, ficam impossibilitados de cuidar de si, com os filhos ausentes na grande Lisboa ou no estrangeiro, na luta pela vida. Estes infelizmente senti-las-ão mais que todos. Aqui na Santa Casa ultimamente tem sido um corrupio de candidatas a procurar emprego. Gostaríamos de dar trabalho a muitas mais. Mas todas as organizações, e a nossa também, têm limites que há que respeitar sob pena de a barca soçobrar. E quem não fica com o coração a sangrar, perante a aflição de um filho ou duma filha, com o emprego longe daqui, e que precisa urgentemente de internar a mãe (ou o pai), que já não pode ficar sozinha!

A responsabilidade por este estado das coisas cabe a todos. Ao Governo, em primeiro lugar, que deixou crescer a despesa pública duma forma que é inadmissível. Como se não tivesse que prestar contas. Cabe às instituições e universidades e homens da cultura, que formatam a mentalidade vigente, insistindo na ideia de que a pobreza se erradica combatendo os patrões. Como se a solução não fosse criar riqueza. É do que temos mais falta, de quem tenha a coragem de lançar novas empresas e novos postos de trabalho. Cabe finalmente a cada um de nós, cidadãos, que gozámos à tripa forra, no tempo das vacas gordas, e não investimos em estudo e saber nem amealhámos o suficiente para os dias de hoje. Não gosto de me lamentar nem do papel de vítima. Entendo que, no meio das maiores dificuldades, só sairemos delas espreitando as oportunidades que não passam duas vezes. É melhor lançarmos mão dos bons exemplos.

“Bill Gates (fundador da Microsoft) vai dar metade da sua fortuna à sociedade. E os milionários portugueses?” - era este o título que um jornal de referência nos oferecia há dias para leitura e meditação. E acrescentava: “Mais de 40 multimilionários americanos vão doar 50 por cento dos bens a causas sociais. Fomos perguntar aos homens mais ricos do país se tencionam fazer o mesmo. Todos sentem uma responsabilidade social e tentam ajudar os que precisam. A criação de fundações indica que pretendem fazer mais. A Fundação Champalimaud, que inaugura amanhã o seu Centro para o Desconhecido, pode ser um exemplo para os outros milionários.”

“Deve seguir-se a vontade do fundador porque esta é a natureza da própria filantropia,” explica Leonor Beleza, “e também porque, se não fosse assim, não se estaria a encorajar potenciais filantropos. E essa é uma função relevante, dos cidadãos e do Estado: encorajar a filantropia.” Aproveito aqui para relembrar que, para ajudar a Misericórdia, não é preciso chegar a milionário.

Há em Espanha uma organização não governamental (ONG), de nome Zonta, que foi fundada há 85 anos e está presente em 68 países. Através das suas acções de voluntariado e das suas quotas, as mulheres de Zonta trabalham pelo progresso da mulher no mundo, promovendo acções de formação, concedendo bolsas e prémios a mulheres e estudantes, e lançando projectos humanitários.

“A filosofia desta ONG,” segundo explica a presidente, Ana Requesens, “radica no conceito anglo-saxónico de considerar que se deve devolver à sociedade o que esta dá aos cidadãos. Na sociedade espanhola (e na portuguesa passa-se o mesmo) tem-se mais a ideia de que o Estado é que deve resolver todos os problemas porque para isso se pagam os impostos. Mas qualquer um que tenha trabalhado em temas de exclusão social vê que as necessidades vão muito para além.” Há uma responsabilidade do cidadão, sobretudo privilegiado, de envolver-se, de arranjar tempo para estas causas. Quão gratificante não será para cada um de nós, sentirmos, na hora de prestar contas, que não ficámos a dever nada, mas mesmo nada, à sociedade, que nos pagou os estudos e nos cuidou da saúde e nos proporcionou as condições de vida que nos permitem cantar, como a Joan Baez cantava: “Gracias a la vida, que me há dado tanto!” É isto que sinto, é esta a coisa com a qual me sinto bem.

 

Santa Casa da Misericórdia, 23/10/2010                       José Pereira Bairrada

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