Não haverá outra Florence Nightingale?

27-01-2015 18:39

Num destes dias, enquanto estendia roupa, as peúgas da família, dei comigo a pensar nas enfermeiras e em Florence Nightingale.
Florence Nightingale é mundialmente considerada a fundadora da enfermagem moderna. Com a sua iniciativa e o seu trabalho contribuiu para dignificar uma profissão – a da enfermagem – que até à época era um trabalho desqualificado, socialmente desvalorizado e mal remunerado, sendo os cuidados médicos prestados sem qualquer qualidade técnica e a profissão desempenhada pelas Irmãs de Caridade e sobretudo, pelas matrons, pessoas com uma conduta pessoal reprovável: alcoolismo, roubo, desleixo, promiscuidade, etc.
Estudando as condições em que os cuidados médicos eram prestados, Florence Nightingale demonstrou estatisticamente que quando a técnica e a assepsia eram respeitadas, morriam menos pessoas (naquele caso, soldados, pois a estatística foi feita nos hospitais militares do Reino Unido) do que nas circunstâncias então existentes e que era de toda a conveniência a formação pessoal e profissional das enfermeiras.
Analisando o valor social do trabalho doméstico, podemos concluir que ainda hoje, no século XXI e por cá, comunga de algumas das características da enfermagem no final do séc. XIX: socialmente desvalorizado, com um desempenho associado no imaginário a um nível socioeconómico baixo, de preferência executado por emigrantes, das quais muitas sem a escolaridade básica e sem qualquer formação técnica. E, se não é mal remunerado, comparando com outras profissões, é porque a oferta é escassa.
Mas o trabalho da casa é uma profissão? Não é só limpar o pó, despejar o lixo, cozinhar e pouco mais? Não existem hoje em dia máquinas de cozinhar? Aspiradores robots?
Existem máquinas e deviam existir ainda mais. Mas, quem as põe a funcionar? Quem tem os conhecimentos técnicos necessários para, utilizando-as, elaborar ementas equilibradas, saborosas, que diminuam os riscos da obesidade, das doenças cardiovasculares e outras? Para lavar a roupa, limpar o chão, etc., sem utilizar mais detergente que o adequado, contribuindo para a sua manutenção, durabilidade e evitando poluir o ambiente? Quem organiza o trabalho doméstico equilibrando os recursos disponíveis e evitando o desperdício? Quem está preparado para reintroduzir em casa a beleza de umas flores dispostas com gosto, de uma travessa que vem à mesa tão bonita que diminui a falta de apetite e o cansaço de qualquer um?
Num momento ou noutro, não há ninguém que não tenha vivido o caos que se instala quando, por doença, excesso de trabalho, etc. a mãe, ou quem se encarrega desse trabalho, deixa de o poder realizar.
Para não referir os desastres causados pelos que começam a desempenhar esta profissão: refeições intragáveis, panelas queimadas, peúgas no lixo, máquinas avariadas, etc… e o orçamento familiar com cada vez menos recursos disponíveis.
Frequentemente, nos meios de comunicação social, no Parlamento e em outras tribunas públicas, lamenta-se o facto de as mulheres a exercerem cargos de elevada responsabilidade serem muito poucas.
Penso que uma das razões porque isto acontece é que nenhuma mulher consegue, sem ajuda, compatibilizar essas funções com as domésticas. Sem a ajuda preparada e experiente de alguém é muito difícil compatibilizar dois trabalhos igualmente exigentes e por isso a escolha inteligente quando não a única, é optar por sacrificar a carreira pública, por assim dizer, pela doméstica e conseguir estar mais tempo em casa, proporcionando aos outros membros da família um bem-estar que de outro modo seria difícil de alcançar
Por isso pergunto-me: no início do Séc XXI, tal como Florence Nightingale no Sec. XIX, não será altura de repensar o valor do serviço doméstico? Reconhecer a mais-valia deste trabalho, as condições em que deve ser prestado, a necessária formação técnica e humana e deste modo contribuir para o justo prestígio de uma profissão tão preconceituosamente vilipendiada. E, claro, passar das palavras aos actos na decisão política.
Maria Filomena Santos - Advogada